Pessoas, Processos e Tecnologia: o tripé de Legal Ops
Integrar de pessoas, processos e tecnologia é fundamental para a gestão jurídica mais estratégica, eficiente e inovadora
A concorrência dentro da empresa é sutil, e os riscos estão onde ninguém espera.
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Se você é advogado in-house, sabe que sua vida é uma maratona sem linha de chegada. O dia começa com um contrato de fornecimento, passa por uma disputa com um fornecedor, um pedido urgente de revisão de cláusulas ESG, e termina com um chamado do time de compliance. Ah, e no meio disso tudo, alguém pergunta:
"Tem algum problema nesse e-mail?"
Minha carreira começou no direito da concorrência, atuando como advogado especializado em atos de concentração, investigações de condutas e treinamentos. Depois, fui para o mundo in-house, onde descobri que a concorrência dentro da empresa é um jogo muito mais sutil. Diferente do que se imagina, raramente alguém do time de negócios chega dizendo:
"Podemos compartilhar essa informação com um concorrente?"
Na prática, o desafio é outro. As questões concorrenciais aparecem subentendidas, diluídas em discussões comerciais e estratégicas, misturadas com contratos, precificação e parcerias. Trabalhar com concorrência dentro de uma empresa exige um radar sempre ligado – um trabalho de escuta ativa, de fazer as perguntas certas e, muitas vezes, de garimpar entre as conversas para entender onde estão os riscos.
Se tem uma coisa que aprendi nesse processo, é que a confiança do time de negócios no jurídico é essencial. Se eles não se sentem confortáveis para discutir os planos abertamente, o advogado só descobre o problema quando ele já virou um problema de verdade. E, na era digital, onde decisões são tomadas em tempo recorde e informações circulam mais rápido do que nunca, os riscos concorrenciais estão por toda parte – muitas vezes escondidos onde ninguém espera.
Então, se você é advogado in-house e acha que concorrência é um tema distante, aqui estão alguns pontos de atenção para não deixar nada passar.
1. O WhatsApp e os Canais Informais: O Maior Risco Está Dentro da Empresa
Nos anos que passei como advogado in-house, vi de tudo quando o assunto é troca de informações sensíveis. Já me deparei com grupos de WhatsApp onde funcionários de diferentes áreas discutiam preços, prazos e estratégias comerciais, sem a menor noção do risco concorrencial envolvido.
O perigo dessas conversas informais é que elas não deixam rastro de governança e compliance. Um e-mail ainda pode ser revisado pelo jurídico antes de ser enviado, mas mensagens instantâneas criam um ambiente propício para desastres.
O problema não é só a intenção – é a percepção. Mesmo sem querer, um funcionário pode acabar dando margem para uma investigação concorrencial simplesmente porque digitou algo sem pensar.
O que fazer?
✔ Criar diretrizes claras sobre trocas de informações comerciais, inclusive em canais informais como WhatsApp, Teams e Slack.
✔ Explicar que nem toda informação pública pode ser compartilhada (às vezes, o timing e o contexto fazem toda a diferença).
✔ Criar uma cultura de "pergunte antes", evitando que decisões arriscadas sejam tomadas sem consulta ao jurídico.
2. Plataformas de Coleta de Dados: Inteligência de Mercado ou Cartel Disfarçado?
Lembro da primeira vez que uma área de negócios me pediu para revisar um contrato com uma empresa de inteligência de mercado. "Eles só consolidam dados públicos", me disseram. E, à primeira vista, parecia tudo certo.
O problema? Muitas dessas plataformas oferecem informações de concorrentes de forma estruturada e praticamente em tempo real. Isso pode facilitar um alinhamento de mercado sem necessidade de comunicação direta entre empresas – e esse é exatamente o tipo de situação que o CADE e outras autoridades antitruste estão de olho.
O risco concorrencial pode não estar no simples acesso às informações, mas na forma como elas são usadas para decisões estratégicas.
O que fazer?
✔ Antes de contratar um serviço de inteligência de mercado, verificar como os dados são coletados e apresentados.
✔ Avaliar se o acesso simultâneo a preços e cotações de concorrentes pode facilitar um comportamento coordenado.
✔ Garantir que a empresa não esteja, sem perceber, participando de um cartel tecnológico disfarçado de benchmarking.
3. Algoritmos e Precificação Automática: Quando a IA Faz o Cartel por Você
O advogado in-house moderno precisa entender tecnologia e dados. Já vi empresas adotando algoritmos de precificação sem considerar o impacto concorrencial – "É só um software que ajusta preços automaticamente, o que pode dar errado?".
O problema é que, sem intervenção humana, algoritmos podem aprender padrões de concorrentes e replicá-los, criando um alinhamento de preços involuntário.
Isso já aconteceu em investigações na Europa e nos EUA. No Brasil, ainda não vimos grandes casos, mas a tendência é que as autoridades concorrenciais fiquem cada vez mais atentas a esse fenômeno.
O que fazer?
✔ Se sua empresa usa ferramentas de precificação automática, entender quais critérios são usados para definir preços.
✔ Monitorar se há padrões suspeitos, como aumentos simultâneos com concorrentes sem justificativa clara.
✔ Incluir o jurídico na configuração desses sistemas, evitando riscos futuros.
4. M&As e Joint Ventures: Nem Toda Operação É Simples
Quando trabalhei com fusões e aquisições, vi muitos advogados in-house assumirem que apenas grandes operações precisam passar pelo CADE. Mas, no mundo digital, essa lógica não funciona mais.
Hoje, pequenas aquisições de startups podem levantar bandeiras vermelhas, principalmente se houver indícios de killer acquisitions – quando uma empresa grande compra uma menor para evitar concorrência futura.
Além disso, contratos comerciais podem ser considerados atos de concentração. Distribuições exclusivas, parcerias estratégicas e joint ventures podem precisar de análise concorrencial.
O que fazer?
✔ Antes de fechar uma operação, avaliar se há impactos concorrenciais relevantes.
✔ Não assumir que só fusões grandes precisam de notificação ao CADE – no setor digital, pequenas aquisições também são analisadas.
✔ Sempre checar se contratos estratégicos podem levantar dúvidas sob a ótica antitruste.
5. Compliance Concorrencial: O Básico Não É Mais Suficiente
Durante minha trajetória, percebi que compliance concorrencial ainda é visto como algo burocrático e distante da realidade. Mas, na era digital, um programa de compliance tradicional já não basta.
Hoje, um bom programa precisa:
✔ Considerar novos riscos digitais, como uso de inteligência de mercado e precificação algorítmica.
✔ Ser personalizado para diferentes áreas da empresa, focando nos setores mais expostos (comercial, suprimentos, marketing).
✔ Estar integrado ao dia a dia – porque ninguém vai lembrar do treinamento do ano passado na hora de tomar uma decisão em um grupo de WhatsApp.
Conclusão: Concorrência Não É Só Para Especialistas – E Isso É um Problema
O mundo ideal seria aquele em que toda empresa tivesse um advogado especialista em concorrência. Mas a realidade é que, na maioria das empresas, quem lida com isso é o advogado in-house comercial, contratual ou regulatório – que já tem uma pilha de outras responsabilidades.
A boa notícia? Não é preciso ser um especialista para identificar riscos básicos. Basta ter consciência de onde eles podem surgir e garantir que a empresa esteja bem orientada.
Afinal, o direito da concorrência pode parecer distante… até o dia em que ele bate na sua porta.