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NFTs – Non-Fungible Tokens: A tokenização em 3 dimensões e seus reflexos jurídicos: Uma análise interdisciplinar

NFTs em 3 dimensões. Quais os reflexos da tecnologia em 3 dimensões e no mundo jurídico.

Uma parceria com

Introdução

NFTs ou, em tradução livre, Tokens Não-Fungíveis, são uma inovaçãodo mundo digital para a representação de bens digitais únicos e transacionáveis.Diferentemente das criptomoedas como o Bitcoin, que tem a característica dafungibilidade, uma NFT que represente a propriedade sobre uma escultura deLygia Clark não se confunde com a da propriedade sobre uma obra de CandidoPortinari. E estes ativos podem ser comprados, doados, vendidos ou, até mesmo,destruídos no mundo digital, tal qual uma propriedade.

Pela característica da não-fungibilidade, NFTs não operam comomoedas, mas sim como bens singulares, que podem representar obras de arte,músicas, vídeos e partes de mundos virtuais, como o emblemático casoDecentraland[1].Qualquer ativo digital ou digitalizável pode ser registrado no blockchain, gerandouma hash, que funciona como um código de autenticidade no mundo digital,o qual poderá, por sua vez, ser comercializado de forma segura, pois suaoriginalidade é garantida pela verificação no blockchain, que garantirá asegurança criptográfica do ativo.  

De acordo com o relatório da NonFungible.com, entre janeiro e abrilde 2021, as transações de NFTs ultrapassaram 2 bilhões de dólares. E osregistros das plataformas de transação evidenciam que para cada 1 vendedor, háao menos 2 compradores[2].  Esses números se tornaram expressivos nosúltimos meses também como consequência da pandemia, e da digitalizaçãocompulsória de hábitos e demandas, tanto na vida doméstica, quanto naprofissional.  Tomemos como exemplo atransposição de shows presenciais para sua exibição por meio de lives em redessociais.

Considerando o caráter patrimonial e contraparadigmático destefenômeno, está dado o cenário para uma miríade de reflexos jurídicos, os quaispodem ser melhor analisados se consideradas as múltiplas dimensões desta disrupção.Aqui, trataremos tão somente de 3 dimensões: econômica, sociológica e cultural.

O intuito dessa abordagem não é, de modo algum, esgotar o debate,mas introduzir uma análise sobre sua multidimensionalidade, como questãoanterior e necessária à consolidação de teorias jurídicas sobre o fenômeno.

Este artigo é parte integrante da pesquisa que atualmente desenvolvono Departamento de Filosofia e Teoria do Direito da Faculdade de Direito daUniversidade de São Paulo.

DimensãoEconômica: Money Moves!

A tokenização de ativos está no cerne do debate sobre as DeFi (FinançasDescentralizadas). Organizadas na estrutura blockchain, DeFi são modelos deserviços financeiros desintermediados, ou seja, são serviços que operam sem aintervenção de outros entes, como bancos ou corretoras.

Direitos de propriedade, títulos imobiliários, precatórios e umavariedade de ativos financeiros podem ser tokenizados e, por sua vez,fracionados, de forma ágil, segura e verificável. Vale ressaltar que novocabulário das finanças o processo de “tokenização” não necessariamente passapela tecnologia blockchain. No mundo dos contratos e transações financeiras, tokenspodem se referir tanto a um instrumento de segurança para autenticar transaçõesem meio digital, como a um contrato inteligente (smart contract) baseadoem blockchain e que representa um direito, um ativo real, como as NFTs.

Nesta perspectiva, a seguir listo apenas algumas das aplicações dasNFTs que podem ser analisados sob uma perspectiva econômica: como modalidadede garantia, possibilitando a obtenção ou a realização de empréstimos tendocomo garantia NFTs[3].Como royalties, facilitando o controle da monetização e das transaçõesde obras artísticas, e assegurando ao proprietário seu percentual[4].Como partes fracionadas Fractional Non-Fungible Tokens (F-NFTs)[5],possibilitando a propriedade parcial de um ativo, democratizando seuacesso.  E como um aluguel[6],sendo possível alugar obras de arte, terrenos em mundos digitais ou uniformes exclusivosem jogos blockchain.

Por fim, as NFTs também desempenharão forte papel na economiarentista, através de derivativos negociados fora da Bolsa de Valores (overthe conter derivatives), o que representa mais uma sofisticação para oestudo socioeconômico da financeirização.

 

Dimensão Sociológica:A Brave New World?

Imagem: Dragon City, o maior lote de terreno virtual em Decentraland.

Um mundo virtual que usa tecnologias como realidade aumentada para replicar a realidade do mundooffline. De forma muito simplificada, esta é a definição de um Metaverso (oprefixo – meta – compreendido como “além” e o sufixo – verso – como derivado de“universo”). E hoje Decentraland[7]é o maior experimento social de mundo virtual em escala global.  

Para se tornar um cidadão deDecentraland, basta adquirir um lote do terreno do metaverso, ou seja, umpedaço de terra virtual, equivalente a um lote de 16m x 16m. Cada pedaço deterra é um NFT, que assim como no mundo físico, são partes únicas, insuscetíveisde duplicação ou adulteração. Na imagem acima, temos Dragon City, umarepresentação da arquitetura e da cultura chinesa, construída com base nodesign taoísta por usuários chineses da plataforma Decentraland. Para além dodesign, o grupo de usuários que adquiriram este lote entende que o que mais osatraiu foi a possibilidade de “possuírem” uma terra, ainda que de um mercadoimobiliário virtual, posto que a legislação chinesa não admite a propriedade deterra privada.

Metaversos e ambientes virtuaiscongêneres inspirados por esse conceito existem desde a década de 1990, noentanto, nenhum deles, até Decentraland, teve o mesmo impacto sobre o mundooffline. A união de dois fatores sociais recentes talvez ajude a compreender ofenômeno: a intensificação do isolamento social e a consequente transferênciadas interações sociais e das fontes de comunicação e entretenimento para omundo digital; ambos são desdobramentos da Pandemia de Covid-19. Piven apontaque a solidão gerada pelas restrições da pandemia criou o ecossistema idealpara que as pessoas passassem mais tempo e investissem mais dinheiro em seureino imaginário favorito[8].

Mercados de cripto-colecionáveise de cripto arte sempre existiram e, inclusive, já tinham bastante força até oano de 2019, mas foi apenas nas últimas semanas que um número extraordinário detransações foi observado. E em meio a muitas teorias que tentam compreendereste novo cenário socioeconômico, uma das mais reiteradas é a que associa os desdobramentosda Pandemia acima mencionados à resposta econômica norte-americana à crise, nosentido de queda das taxas de juro e concessão de pacotes de estímulo[9][10].Esta conjuntura teria impulsionado a busca de ativos mais arrojados, que uniamaspectos já conhecidos do mercado (criptomoedas) e aspectos de atratividade evalor simbólico (possuir e/ou colecionar ativos digitais incomuns). A curva nográfico abaixo mostra com exatidão a virada de interesse do termo NFT considerandoos últimos 12 meses.

Fonte: Google Trends

 A mudança de paradigma socialdeterminada pela crise sanitária ainda está em curso e, portanto, a análisesobre esta nova realidade ainda não está dada. A despeito disso, novas formasde organização e de comportamento já foram incorporadas à sociedade e ofenômeno das NFTs nos estimula a urgentemente refletir sobre um novo fatosocial que não apenas se reproduz, como também já foi comoditizado.  

 Mundos, ou Metaversos, comoDecentraland, se tornarão cada vez mais comuns e os impactos sobre nossasformas de vida, de trabalho, de interação social, de entretenimento e degeração de valor social, serão inevitáveis, resta saber quais agentesparticiparão da constituição destas novas realidades, em que medida estasafetarão o mundo offline e como nossa constituição como sociedade, até aqui,refletirá na construção desses mundos.

 Dimensão Cultural: Selfie inChains

Imagem: TheGucci Virtual 25

Imagem: TheGucci Virtual 25 

Na esfera cultural, o mundo da arte, da moda e do entretenimento sãoo Santo Graal das NFTs, mas antes da chegada das NFTs nesse mundo, músicas,filmes, roupas e demais obras artísticas já eram objeto de disseminação pormeio digital. Canais de streaming se solidificaram no atual mercado, sobretudono âmbito da música e do cinema. No mundo da moda, coleções inteiras já eramelaboradas tão somente para a disponibilização em Vídeo Games e E-Sports, estesúltimos se tornaram porta de entrada para a conexão entre marcas de luxo e asgerações Z e Millenium. Caminhando para o mundo das redes sociais, a Guccilançou o “Virtual 25” um tênis virtual que poderá ser utilizado apenas comofiltro do celular, quando a câmera captura os pés para o registro da imagem.

Assim como na era da digitalização, na era da tokenização, aindústria cultural também será protagonista. Na esfera do entretenimento, a NBAlançou uma plataforma para a negociação de NFTs relacionados à liga americanade basquete, a NBA Top Shot. Desde o lançamento já foram disponibilizadosdiversos tokens colecionáveis: de cards raros a vídeos nostálgicos com asmelhores partidas.

Na indústria musical não é diferente e talvez estejamos observandouma nova revolução neste setor, que desde a virada dos vinis para o advento dosCDs, não passa mais de uma década sem uma nova onda disruptiva. O que a NFTpoderia oferecer como diferencial competitivo é a exclusividade. Através destatecnologia, seria possível criar álbuns em edições limitadas, músicas inéditascom assinatura dos autores, e outros itens colecionáveis que se somariam àmúsica, os quais, uma vez tokenizados, poderiam ser transferidos e rastreados,porém nunca adulterados.

Esse movimento de mercado teve início no mundo das artes plásticas eda fotografia, que na última semana vendeu a fotografia (um arquivo em JPG)mais cara do mundo, por 69 milhões de dólares[11].Críticos de arte em todo o mundo questionaram o valor da obra e instauraram umareflexão sobre a arte como mercadoria em tempos de tokenização da arte. E adiscussão sobre “valor simbólico” conceito arraigado na teoria crítica daindústria cultural, emerge neste debate, pois a arte, em um primeiro momento, écomoditizada e, em seguida, fetichizada[12].O caso abaixo ilustra bem o debate sobre fetichismo da mercadoria cultural aquimencionado.

 

 

Em março deste ano o conhecido meme “Disaster Girl” foi vendido pelovalor de R$ 2,55 milhões de reais. A imagem foi convertida em NFT e seusdireitos de propriedade vendidos. Mas a vendas desses direitos não impediu quea imagem continuasse sendo compartilhada e baixada por não proprietários. Qualseria o sentido, então, de ser proprietário de uma imagem que pode serusufruída gratuitamente por qualquer outra pessoa? Qual é o valor de possuiruma NFT? É para responder este questionamento que os conceitos de valorsimbólico e fetichismo da mercadoria cultural poderão ser aplicados.

A principal motivação por trás dos preços estratosféricos das NFTs ea frenesi de colecionadores se correlaciona diretamente com o que elasrepresentam, como símbolo e status social. Aqueles que adquirem esses bens comocolecionadores, e não como investidores, almejam possuir um bem prestigiado,desejado ou raro. No caso das NFTs, o que até aqui se pode observar, é que osaltos valores transacionados denotam a presença de um viés de investimentoespeculativo. O que permite concluir que poderia existir, na dimensão cultural,através das NFTs, mais uma classe de ativos a serviço da financeirização.

 

Reflexos Jurídicos: B* better have my money         

A realidade das NFTs é complexa, multidimensional e de forma algumabanal, e neste momento, adotar uma racionalidade positivista, tentando preverreflexos jurídicos deste fenômeno, seria distorcer esta realidade paraapaziguar minhas próprias inquietações sobre o tema.

Assim, em um esforço de não reduzir o fenômeno, mas já iniciar atematização sobre como o Direito reage a este. Entendo, de antemão, que as NFTsditarão um novo modelo de regulação para as criptomoedas, pois áreas do Direitocomo Propriedade Intelectual, Penal, Tributário, Consumidor, Ambiental eContratos passam a ter uma maior tangibilização dos bens transacionados, assimcomo uma maior pulverização dessas transações.

A transformação de bens de consumo digitais para o formato NFT é umestímulo à eliminação de barreiras de desinteresse pelo tema das criptomoedas.A popularização do tema e, eventualmente, das transações realizadas, sobretudono âmbito da indústria cultural, poderá gerar um efeito de pulverização,tornando conceitos como ethereum e blockchain mais comuns e não mais restritosa alguns círculos sociais.

Esses potenciais efeitos serão um estímulo à presença do Direito emtemas relacionados a revisão de contratos, direitos autorais, formas detributação, anticorrupção, dados e meio ambiente. Há uma infinidade depossibilidades e hoje nossa melhor postura, como interessados nos fenômenosjurídicos e sociais, é observar, acompanhar e compreender seus potenciaisefeitos sobre nossa realidade.


[1] https://decentraland.org/

[2] https://nonfungible.com/

[3] https://nftfi.com/

[4] https://superrare.co/

[5] https://www.niftex.org/

[6] https://www.cypherhunter.com/en/p/renft/

[7] https://decentraland.org/

[8] https://www.aljazeera.com/economy/2021/3/26/fed-up-employees-nft-land-grab-and-prince-harrys-unicorn

[9] https://www.washingtonpost.com/business/2020/03/15/federal-reserve-slashes-interest-rates-zero-part-wide-ranging-emergency-intervention/

[10] https://www.cnbc.com/2021/03/17/stimulus-update-us-issued-90-million-checks-worth-242-billion.html

[11] https://www.nytimes.com/2021/03/11/arts/design/nft-auction-christies-beeple.html

[12] ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento.Rio de

Janeiro.Jorge Zahar Editor,1985. p.151.

Autores

Tayná Carneiro
CEO Future Law